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Split payment: um super sistema para um super problema

Substituir arena de debates e garantias por lógica binária é negar que tributação deve estar a serviço da justiça e não só da eficiência

A Receita Federal tem alardeado o investimento bilionário na construção de um “super sistema” para viabilizar o split payment, mecanismo que fraciona automaticamente cada transação e envia a parcela correspondente do tributo diretamente ao Tesouro.

A Lei Complementar 214/2025 já lhe deu fundamento jurídico, ao criar a conta corrente fiscal e prever a devolução de valores recolhidos a maior em até três dias úteis. O PLP 108/2024, que tramita para ajustes operacionais, busca conferir maior segurança ao modelo.

É preciso reconhecer que há méritos nessa arquitetura: a promessa de devolução célere, por exemplo, representa um avanço em relação ao passado, em que o contribuinte ficava meses ou anos à espera de restituições.

Mas a tecnologia, por mais sofisticada que seja, não elimina as fragilidades constitucionais e práticas do modelo. O que está em jogo é a coerência do sistema tributário diante de princípios que não podem ser subvertidos por algoritmos.

O artigo 145, §1º, da Constituição exige que a tributação observe a capacidade contributiva. O artigo 116 do CTN define que o fato gerador só se considera ocorrido quando efetivamente verificada a situação material prevista em lei. O split payment, ao reter imposto em operações canceladas, inadimplidas ou sujeitas a devolução pelo consumidor, cria um fato gerador fictício, tributando riqueza que não existe.

Há, além disso, uma reedição velada do solve et repete. O artigo 151 do CTN prevê hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário justamente para afastar a lógica de pagar primeiro e discutir depois. O sistema, ao prometer devolver em três dias úteis, não altera a essência do problema: o tributo é recolhido antes e só retorna após o processamento do pedido.

No comércio varejista, o contraste é ainda mais cruel. O comerciante é obrigado a reembolsar de imediato o consumidor em casos de estorno ou cancelamento, mas deve esperar para reaver o imposto retido. Três dias, multiplicados por milhares de operações diárias, significam capital de giro drenado em benefício da Fazenda.

O modelo transfere ainda ao contribuinte o ônus da inadimplência. Nas vendas a prazo, se o consumidor não paga, a empresa não recebe, mas o imposto já foi recolhido. O artigo 128 do CTN permite atribuir responsabilidade a terceiros apenas por lei e de forma expressa, vinculada ao fato gerador.

Aqui, não há lei que atribua responsabilidade, mas um sistema que transforma o comerciante em fiador do Tesouro por via indireta. Trata-se de uma responsabilidade tributária presumida, sem base legal, que viola o princípio da legalidade tributária inscrito no artigo 150, I, da Constituição.

O problema se agrava quando se examinam as situações cotidianas do varejo. A multiplicidade de operações desafia qualquer algoritmo. Há vouchers comprados antecipadamente e utilizados meses depois, programas de fidelidade em que pontos são trocados por descontos ou mercadorias, promoções-relâmpago que alteram preços após a emissão do documento fiscal, trocas com diferença de valores que exigem complementos ou devoluções parciais.

Cada uma dessas hipóteses pode gerar retenções indevidas de tributos, obrigando as empresas a acionar repetidamente o mecanismo de devolução. A promessa de reembolso em três dias, nesse contexto, não resolve o problema, mas apenas o institucionaliza.

Há ainda a interface com o Código de Defesa do Consumidor. O direito de arrependimento nas compras à distância, as trocas por vício ou defeito, os cancelamentos previstos em lei tornam o risco ainda maior. Mesmo uma venda faturada e paga pode ser desfeita por determinação legal. O comerciante devolve o valor ao cliente de imediato, mas o imposto retido só é devolvido pelo sistema depois. Esse descompasso viola a capacidade contributiva e cria desequilíbrios que comprometem a liquidez do setor produtivo.

O risco não se limita às operações comerciais. Ele alcança a esfera da própria legitimidade da arrecadação. Hoje, diante de um erro, o contribuinte pode recorrer a instâncias administrativas ou judiciais. No split payment, quem decide é o algoritmo. O tributo é retido e transferido automaticamente, ainda que a operação esteja incorreta ou mal parametrizada. Se houver falha de integração bancária ou erro de sistema, o valor já terá saído do caixa da empresa.

E quem responde pelo erro? A lei não estabelece responsabilidade clara para o Estado nesses casos, mas é evidente que não pode ser o contribuinte a arcar com prejuízos que não lhe pertencem.

Nada disso significa ignorar os méritos do PLP 108. A previsão de devolução em três dias úteis é avanço considerável. Mas não resolve os dilemas estruturais. Continuam em aberto a compatibilidade com o Código de Defesa do Consumidor, a definição da responsabilidade por inadimplência e erros de sistema, a compatibilização com os princípios constitucionais da legalidade, da capacidade contributiva e da vedação ao confisco.

O caminho é buscar soluções que conciliem arrecadação eficiente e segurança jurídica. O split payment poderia ser limitado a setores de alto risco de evasão, em vez de generalizado. Poderia condicionar a retenção ao efetivo recebimento pelo fornecedor, ajustando-se à lógica da capacidade contributiva. E deveria prever responsabilidade objetiva do Estado por falhas do sistema, garantindo que o contribuinte não seja penalizado por problemas que não lhe dizem respeito.

Um super sistema pode melhorar controles fiscais, mas não pode substituir a Constituição. O tributo é mais do que cálculo automático mediante a simples aplicação de alíquota e base de cálculo, mas sim a expressão de um pacto que protege tanto o interesse do Estado em arrecadar quanto o direito do contribuinte de só ser tributado quando houver riqueza efetiva.

Sem esse equilíbrio, corremos o risco de transformar a busca por eficiência em um experimento de engenharia fiscal que mina a segurança jurídica e ameaça a viabilidade de quem sustenta a economia real.

Por mais sofisticado que seja, não se pode presumir que o sistema de split payment e de devoluções seja infalível nem capaz de lidar com todas as situações do cotidiano. Ao transferir a gestão do tributo para um algoritmo, desloca-se também o contencioso fiscal da esfera humana, com tribunais, conselhos e instâncias administrativas, para a lógica automática de um código.

É como deixar de lidar com o fisco, expressão institucional do Estado, para negociar diretamente com uma máquina que cobra de forma implacável e pode corrigir de maneira imperfeita. O risco é de termos um Estado fiscal algorítmico: eficiente na retenção, mas falível na reparação, e, sobretudo, distante dos princípios constitucionais que exigem proporcionalidade, razoabilidade e capacidade contributiva como balizas da tributação legítima.

O contencioso fiscal, em sua essência, é um espaço de dialética. É ali que se confrontam interpretações, se avaliam contextos e se pesam nuances de cada caso concreto. O direito não é uma equação exata, mas um processo humano que envolve argumentação, subjetividade e a compreensão das circunstâncias.

Ao transferir o centro das decisões para uma máquina, o que se compromete não é apenas a segurança operacional do sistema, mas a própria essência do direito tributário enquanto campo em que o contribuinte é reconhecido como sujeito de direitos.

O algoritmo não dialoga, não pondera, não reconhece exceções legítimas, limitando-se a executar operações programadas de antemão. Substituir a arena de debates e garantias por uma lógica binária é negar que a tributação deve estar a serviço da justiça e não apenas da eficiência, esvaziando o sentido do pacto constitucional que sustenta o Estado democrático de Direito.

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